A palavra cocheiro
é formada de coche, com o acréscimo eiro. Coche é certo tipo de
carruagem antiga e suntuosa; e cocheiro
é aquele que guia os cavalos de uma carruagem.
A vida do cocheiro não era fácil lá nos idos tempos. O regulamento para cocheiros, no Brasil, durante o Império previa punições policiais para aquele que infringissem as regras estabelecidas no regulamento para sua profissão. Em 1872, por exemplo, no Regulamento Policial elaborado pelo chefe de polícia, constam as seguintes obrigações para o cocheiro, entre outras:
1. Apresentar-se decentemente vestido;
2. Não dormir dentro do veículo, nem fumar estando em serviço;
3. Dar cartão ao passageiro quando este entrar no coche;
4. Não se recusar ao serviço do passageiro que o for buscar no ponto da estação;
5. Levar o passageiro para o local que este designar;
6. Caminhar dentro da cidade a trote curto;
7. Seguir sempre à direita, e não passar sobre os lajedos das ruas;
8. Não parar nas esquinas das ruas, nem defronte de outro veículo nas ruas estreitas, nem diante da entrada dos lugares públicos;
9. Examinar o veículo logo que se apear o passageiro, entregando-lhe qualquer objeto nele deixado, ou à repartição da polícia;
10. Agir com polidez para com o passageiro, evitando toda e qualquer alteração;
11. Não estacionar fora das estações, não chamar fregueses, não andar em vai-e-vem em busca deles, não se reunirem em grupo, nem perturbar a tranqüilidade pública com gritos, disputas, rixas ou de qualquer outra maneira;
12. Não cobrar preço maior do que o mercado na tabela;
13. Não andar à noite sem duas lanternas acesas;
14. Não maltratar os animais;
15. Responder pelos danos causados pelos trens;
16. Conservar os veículos em estado de asseio, e verificar se os animais que os puxam estão convenientemente ferrados.
O conto, a seguir, escrito pelo nosso João do Rio, e que tem por título “Velhos Cocheiros”, oferece uma visão mais ampla de como viviam e de como trabalhavam os nossos antigos cocheiros.
Velhos Cocheiros
Outro dia, ao saltar de um tílburi no antigo Largo do Paço, vi na boléia de um vis-à-vis pré-histórico a ventripotência colossal de um velho cocheiro. As duas mãos gorduchas à altura do peito como quem vai rezar, enfiado numa roupa esverdinhada, o automedonte roncava.
Seria uma recordação literária ou a memória de uma fisionomia de infância? Seria o cocheiro da Safo, o irmão mais velho de Simeon, ou simplesmente um velho cocheiro que eu tivesse visto na doce idade em que todas as emoções são novas? Era difícil adivinhar. Para os cérebros cheios de literatura, a verdade obumbra-se tanto que é sempre preciso perguntar por ela como o fez Poncius Pilatos diante de Deus.
Fui para perto do vis-à-vis, bati na perna do velho. Estava feio. O ventre, um ventre fabuloso, parecia uma talha que lhe tivessem entalhado ao tronco; as pernas, sem movimento, pendiam como traves; os braços, extremamente desenvolvidos, eram quase maiores que as pernas; e a caraça vermelha, com tons violáceos, lembrava os carões alegres do Carnaval. Abriu, entretanto, uma das pálpebras com mau humor e resmungou:
— Pronto!
— Então você não me conhece mais?
— Eu não, senhor.
— Pois eu conheço a você desde menino.
Ele abriu de todo as pálpebras pesadas, um sorriso de alegre bondade passou-lhe pelo lábio.
A vida do cocheiro não era fácil lá nos idos tempos. O regulamento para cocheiros, no Brasil, durante o Império previa punições policiais para aquele que infringissem as regras estabelecidas no regulamento para sua profissão. Em 1872, por exemplo, no Regulamento Policial elaborado pelo chefe de polícia, constam as seguintes obrigações para o cocheiro, entre outras:
1. Apresentar-se decentemente vestido;
2. Não dormir dentro do veículo, nem fumar estando em serviço;
3. Dar cartão ao passageiro quando este entrar no coche;
4. Não se recusar ao serviço do passageiro que o for buscar no ponto da estação;
5. Levar o passageiro para o local que este designar;
6. Caminhar dentro da cidade a trote curto;
7. Seguir sempre à direita, e não passar sobre os lajedos das ruas;
8. Não parar nas esquinas das ruas, nem defronte de outro veículo nas ruas estreitas, nem diante da entrada dos lugares públicos;
9. Examinar o veículo logo que se apear o passageiro, entregando-lhe qualquer objeto nele deixado, ou à repartição da polícia;
10. Agir com polidez para com o passageiro, evitando toda e qualquer alteração;
11. Não estacionar fora das estações, não chamar fregueses, não andar em vai-e-vem em busca deles, não se reunirem em grupo, nem perturbar a tranqüilidade pública com gritos, disputas, rixas ou de qualquer outra maneira;
12. Não cobrar preço maior do que o mercado na tabela;
13. Não andar à noite sem duas lanternas acesas;
14. Não maltratar os animais;
15. Responder pelos danos causados pelos trens;
16. Conservar os veículos em estado de asseio, e verificar se os animais que os puxam estão convenientemente ferrados.
O conto, a seguir, escrito pelo nosso João do Rio, e que tem por título “Velhos Cocheiros”, oferece uma visão mais ampla de como viviam e de como trabalhavam os nossos antigos cocheiros.
Velhos Cocheiros
Outro dia, ao saltar de um tílburi no antigo Largo do Paço, vi na boléia de um vis-à-vis pré-histórico a ventripotência colossal de um velho cocheiro. As duas mãos gorduchas à altura do peito como quem vai rezar, enfiado numa roupa esverdinhada, o automedonte roncava.
Seria uma recordação literária ou a memória de uma fisionomia de infância? Seria o cocheiro da Safo, o irmão mais velho de Simeon, ou simplesmente um velho cocheiro que eu tivesse visto na doce idade em que todas as emoções são novas? Era difícil adivinhar. Para os cérebros cheios de literatura, a verdade obumbra-se tanto que é sempre preciso perguntar por ela como o fez Poncius Pilatos diante de Deus.
Fui para perto do vis-à-vis, bati na perna do velho. Estava feio. O ventre, um ventre fabuloso, parecia uma talha que lhe tivessem entalhado ao tronco; as pernas, sem movimento, pendiam como traves; os braços, extremamente desenvolvidos, eram quase maiores que as pernas; e a caraça vermelha, com tons violáceos, lembrava os carões alegres do Carnaval. Abriu, entretanto, uma das pálpebras com mau humor e resmungou:
— Pronto!
— Então você não me conhece mais?
— Eu não, senhor.
— Pois eu conheço a você desde menino.
Ele abriu de todo as pálpebras pesadas, um sorriso de alegre bondade passou-lhe pelo lábio.
— Saiba
vossa senhoria que bem pode ser! Toda essa gente importante de hoje eu conheci
meninos de colégio!
Não sei por que estava meio emocionado.
— E já fez ponto na Estrada de Ferro?
— Há vinte anos, eu e o Bamba.
Encostei-me à boléia do antigo vis-à-vis. Havia vinte anos sim, havia vinte anos que no passar pela estação de carros os meus olhos de criança se fixaram curiosamente na fisionomia jocunda de um velho, que já naquele tempo era velho e já naquele tempo gravemente roncava na boléia de um carro! Havia vinte anos.
É como lhe digo, afirmava ele. Conhece a filha do barão de Cotegipe? Eu vi aquela santa criatura menina. Conhece o filho do grande ministro João Alfredo? É meu amigo, dá-me dinheiro sempre que vem ao Rio. Olhe, há de conhecer o Dr. Fernando Mendes de Almeida e mais o irmão Dr. Cândido. Pois quando eu servia o pai, eles eram meninos de colégio. Há meses eu disse ao Dr. Fernando tudo isso e ele foi dar um passeio no meu carro e deu-me doces, vinho do Porto, dinheiro. Estava admirado e ria...
— Como se chama você?
— Braga, eu sou o Braga.
Pobre velho cocheiro a quem se dá como às crianças doces de confeitaria! Eu continuava encostado ao vis-à-vis, imensamente triste e com a mesma curiosidade de criança.
— Trabalho neste ofício desde 1870. Tinha vinte anos, quando comecei. Toda a minha mocidade foi acabada aqui.
— E não estás rico?!
— Rico?
Soltou uma gargalhada sonora que lhe balançou o ventre e envermelheceu mais. Os seus olhos pequenos olhavam-me da boléia com superioridade compassiva. É difícil encontrar um cocheiro de carro que tenha feito fortuna. Enriquecem os de carroça, os de caminhões. De carro, se citam dois ou três em trinta anos. O ofício, longe de tornar ágeis os corpos, faz lesões cardíacas, atrofia as pernas, hipertrofia os braços, de modo que quinze anos de boléia, de visão elevada do mundo, ao sol e à chuva, estragam e usam um homem como a ferrugem estraga o aço mais fino. O Braga era um velho trapo encharcado. Tanto ádipo dava-me a impressão de que o pobre velho devia ter água nos tecidos.
Eu continuava a ouvi-lo. Naquela boléia falava um cultor do quietismo, um renanista que tivesse compreendido o nirvana. Nem uma ambição, nem um ódio: apenas um sorriso de quem não se rala com a vida e vem para a rua almejando não encontrar fregueses, para dormir mais à vontade.
— Ah! este carro! murmurei. Quanta história podia você contar. Quantas cenas de amor, quantos beijos, quantas angústias e quantos crimes!
— Este carro não; outros, ou antes, eu. Fui de cocheira, fui de casa particular e trabalhei por minha conta. Quando caiu o ministério João Alfredo fui eu quem o levou ao Paço. Agora essas coisas de beijos — noutro tempo era nas berlindas.
— Tinha vontade de saber a sua opinião.
Ele arregalou muito os olhos.
— A respeito de beijos? Sei lá!
— Não, a respeito da Monarquia e da República.
Ele sorriu, pensou.
— A Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene. Não vá talvez pensar que eu sou inimigo da República. Mas recorde por exemplo um dia de audiência pública do imperador. Que bonito! Até era um garbo levar os fregueses lá. Ó Braga, onde estiveste? Fui à Boa Vista! Hoje todo o mundo entra no palácio do Catete. Não tem importância... É verdade que o Obá entrava no Paço. Mas era príncipe. E então para conhecer homens importantes! Não precisava saber-lhes o nome. Os ministros tinham uma farda bonita, o imperador saía de papo de tucano. Bom tempo aquele! Hoje a gente tem de suar para conhecer um ministro. Parecem-se todos com os outros homens.
— Talvez não sejam, Braga.
— Quanto às capacidades não digo nada...Mas veja. Por estar perto da secretaria é que conheço o Müller, um magro, que reforma a cidade. E de todo o ministério só ele. Se isso era possível em 1880! Depois, quer saber? A República trouxe a Bolsa, uma porção de cocheiros estrangeiros, uns gringos e ingleses de cara raspada, com uns carros que até nem eu lhes sabia o nome!
Despegou as mãos de sobre o peito.
— E vão morrendo todas as pessoas notáveis, já não há mais ninguém notável. Só restam o sr. visconde de Barbacena, o sr. marquês de Paranaguá e mais dois outros.
Houve uma longa pausa. Como este cocheiro estava do outro lado da vida! Quinze anos apenas tinham levado o seu mundo e o seu carro para a velha poeira da história! Ele falava como um eco, e estava ali, olhando o boulevard reformado, pensando nos bons tempos das missas na catedral e das moradas reais, hoje ocupadas pela burocracia republicana. . .
— O Braga é o mais velho cocheiro do Rio?
— Não senhor; é o Bamba, que começou em 1864.
Neste momento, outros cocheiros moços, limpos, de grandes calças abombachadas foram aproximando os carros, com vontade de saber o que retinha um cavalheiro tanto tempo a prosar com o velho. Logo se fez um barulho de rodas e de vozes.
— Ó Braga, ó velho, despacha o freguês! tem aqui um carro bom, vossa senhoria! O Braga, posso servir?
Braga cruzou outra vez as mãos no peito, com um sereno olhar indiferente. Que dor o havia de trespassar! Murmurei com pena:
— Bom, adeus, meu Braga. E onde pára o Bamba?
— Na Estrada, pára na Estrada. Às ordens do menino, respondeu ele do alto.
Já agora era impossível deixar de ver o outro, de conhecer o mais antigo cocheiro do Rio! Tomei um bonde da Central. A tarde morria em lento e vermelho crepúsculo. No céu brilhava a primeira estrela trêmula e luminosa, e os combustores acendiam a sua luz azul quando saltei na Praça da Aclamação. E foi um grande trabalho. Eu ia de carro em carro.
— Pode informar onde pára o Bamba?
Uns diziam que o Bamba caíra e fora para o hospital, outros, os moços, riam de que se fosse procurar um cocheiro inútil como o Bamba, outros asseguravam que o velho não trabalhava mais. Afinal, quase defronte da porta do Quartel, encontrei um landau empoeirado, desses que parecem arcas e acomodam à vontade seis pessoas.
Da boléia um mulato velho falava para um gordo ancião, muito gordo, muito stragado...
— Sabe você dizer quem é e onde está o Bamba?
O mulato riu.
— É este, patrão...
O gorduchão abriu a boca, onde faltavam os dentes.
— Já não trabalho de noite: tenho 70 anos. Não vejo. Desde 1864 que estou no serviço.
Outro dia quase morro; caí da boléia. Tenho as pernas duras.
— Bamba, meu velho...
— Sou o primeiro cocheiro, o mais velho, não há nenhum mais velho...
Eu voltei-me para o mulato, interroguei-o quase em segredo:
— Mas que diabo vem ele fazer aqui, assim?
O mulato sorriu com tristeza.
— Sei lá! É o cheiro, vossa senhoria, é o cheiro! Quando a gente começa nesta vida, não pode viver sem ela...É o cheiro.
A praça vibrava numa estrepitosa animação, os combustores reverberavam em iluminações fantásticas, e, só, no céu calmo, como uma hóstia de tristeza, a velha lua esticava a triste foice do seu crescente.
---
É isso!
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Não sei por que estava meio emocionado.
— E já fez ponto na Estrada de Ferro?
— Há vinte anos, eu e o Bamba.
Encostei-me à boléia do antigo vis-à-vis. Havia vinte anos sim, havia vinte anos que no passar pela estação de carros os meus olhos de criança se fixaram curiosamente na fisionomia jocunda de um velho, que já naquele tempo era velho e já naquele tempo gravemente roncava na boléia de um carro! Havia vinte anos.
É como lhe digo, afirmava ele. Conhece a filha do barão de Cotegipe? Eu vi aquela santa criatura menina. Conhece o filho do grande ministro João Alfredo? É meu amigo, dá-me dinheiro sempre que vem ao Rio. Olhe, há de conhecer o Dr. Fernando Mendes de Almeida e mais o irmão Dr. Cândido. Pois quando eu servia o pai, eles eram meninos de colégio. Há meses eu disse ao Dr. Fernando tudo isso e ele foi dar um passeio no meu carro e deu-me doces, vinho do Porto, dinheiro. Estava admirado e ria...
— Como se chama você?
— Braga, eu sou o Braga.
Pobre velho cocheiro a quem se dá como às crianças doces de confeitaria! Eu continuava encostado ao vis-à-vis, imensamente triste e com a mesma curiosidade de criança.
— Trabalho neste ofício desde 1870. Tinha vinte anos, quando comecei. Toda a minha mocidade foi acabada aqui.
— E não estás rico?!
— Rico?
Soltou uma gargalhada sonora que lhe balançou o ventre e envermelheceu mais. Os seus olhos pequenos olhavam-me da boléia com superioridade compassiva. É difícil encontrar um cocheiro de carro que tenha feito fortuna. Enriquecem os de carroça, os de caminhões. De carro, se citam dois ou três em trinta anos. O ofício, longe de tornar ágeis os corpos, faz lesões cardíacas, atrofia as pernas, hipertrofia os braços, de modo que quinze anos de boléia, de visão elevada do mundo, ao sol e à chuva, estragam e usam um homem como a ferrugem estraga o aço mais fino. O Braga era um velho trapo encharcado. Tanto ádipo dava-me a impressão de que o pobre velho devia ter água nos tecidos.
Eu continuava a ouvi-lo. Naquela boléia falava um cultor do quietismo, um renanista que tivesse compreendido o nirvana. Nem uma ambição, nem um ódio: apenas um sorriso de quem não se rala com a vida e vem para a rua almejando não encontrar fregueses, para dormir mais à vontade.
— Ah! este carro! murmurei. Quanta história podia você contar. Quantas cenas de amor, quantos beijos, quantas angústias e quantos crimes!
— Este carro não; outros, ou antes, eu. Fui de cocheira, fui de casa particular e trabalhei por minha conta. Quando caiu o ministério João Alfredo fui eu quem o levou ao Paço. Agora essas coisas de beijos — noutro tempo era nas berlindas.
— Tinha vontade de saber a sua opinião.
Ele arregalou muito os olhos.
— A respeito de beijos? Sei lá!
— Não, a respeito da Monarquia e da República.
Ele sorriu, pensou.
— A Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene. Não vá talvez pensar que eu sou inimigo da República. Mas recorde por exemplo um dia de audiência pública do imperador. Que bonito! Até era um garbo levar os fregueses lá. Ó Braga, onde estiveste? Fui à Boa Vista! Hoje todo o mundo entra no palácio do Catete. Não tem importância... É verdade que o Obá entrava no Paço. Mas era príncipe. E então para conhecer homens importantes! Não precisava saber-lhes o nome. Os ministros tinham uma farda bonita, o imperador saía de papo de tucano. Bom tempo aquele! Hoje a gente tem de suar para conhecer um ministro. Parecem-se todos com os outros homens.
— Talvez não sejam, Braga.
— Quanto às capacidades não digo nada...Mas veja. Por estar perto da secretaria é que conheço o Müller, um magro, que reforma a cidade. E de todo o ministério só ele. Se isso era possível em 1880! Depois, quer saber? A República trouxe a Bolsa, uma porção de cocheiros estrangeiros, uns gringos e ingleses de cara raspada, com uns carros que até nem eu lhes sabia o nome!
Despegou as mãos de sobre o peito.
— E vão morrendo todas as pessoas notáveis, já não há mais ninguém notável. Só restam o sr. visconde de Barbacena, o sr. marquês de Paranaguá e mais dois outros.
Houve uma longa pausa. Como este cocheiro estava do outro lado da vida! Quinze anos apenas tinham levado o seu mundo e o seu carro para a velha poeira da história! Ele falava como um eco, e estava ali, olhando o boulevard reformado, pensando nos bons tempos das missas na catedral e das moradas reais, hoje ocupadas pela burocracia republicana. . .
— O Braga é o mais velho cocheiro do Rio?
— Não senhor; é o Bamba, que começou em 1864.
Neste momento, outros cocheiros moços, limpos, de grandes calças abombachadas foram aproximando os carros, com vontade de saber o que retinha um cavalheiro tanto tempo a prosar com o velho. Logo se fez um barulho de rodas e de vozes.
— Ó Braga, ó velho, despacha o freguês! tem aqui um carro bom, vossa senhoria! O Braga, posso servir?
Braga cruzou outra vez as mãos no peito, com um sereno olhar indiferente. Que dor o havia de trespassar! Murmurei com pena:
— Bom, adeus, meu Braga. E onde pára o Bamba?
— Na Estrada, pára na Estrada. Às ordens do menino, respondeu ele do alto.
Já agora era impossível deixar de ver o outro, de conhecer o mais antigo cocheiro do Rio! Tomei um bonde da Central. A tarde morria em lento e vermelho crepúsculo. No céu brilhava a primeira estrela trêmula e luminosa, e os combustores acendiam a sua luz azul quando saltei na Praça da Aclamação. E foi um grande trabalho. Eu ia de carro em carro.
— Pode informar onde pára o Bamba?
Uns diziam que o Bamba caíra e fora para o hospital, outros, os moços, riam de que se fosse procurar um cocheiro inútil como o Bamba, outros asseguravam que o velho não trabalhava mais. Afinal, quase defronte da porta do Quartel, encontrei um landau empoeirado, desses que parecem arcas e acomodam à vontade seis pessoas.
Da boléia um mulato velho falava para um gordo ancião, muito gordo, muito stragado...
— Sabe você dizer quem é e onde está o Bamba?
O mulato riu.
— É este, patrão...
O gorduchão abriu a boca, onde faltavam os dentes.
— Já não trabalho de noite: tenho 70 anos. Não vejo. Desde 1864 que estou no serviço.
Outro dia quase morro; caí da boléia. Tenho as pernas duras.
— Bamba, meu velho...
— Sou o primeiro cocheiro, o mais velho, não há nenhum mais velho...
Eu voltei-me para o mulato, interroguei-o quase em segredo:
— Mas que diabo vem ele fazer aqui, assim?
O mulato sorriu com tristeza.
— Sei lá! É o cheiro, vossa senhoria, é o cheiro! Quando a gente começa nesta vida, não pode viver sem ela...É o cheiro.
A praça vibrava numa estrepitosa animação, os combustores reverberavam em iluminações fantásticas, e, só, no céu calmo, como uma hóstia de tristeza, a velha lua esticava a triste foice do seu crescente.
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É isso!
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Referências Bibliográficas:
1. Almanach Brazileiro Ilustrado para o ano de 1876 e 1883;
2. João do Rio: “A Alma Encantadora Das Ruas”. Fundação Biblioteca Nacional.
1. Almanach Brazileiro Ilustrado para o ano de 1876 e 1883;
2. João do Rio: “A Alma Encantadora Das Ruas”. Fundação Biblioteca Nacional.
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