Em
relação à palavra gíria, dizem os
etimologistas ser de origem controversa ou obscura. Quanto ao seu sentido,
segundo o professor Rocha Lima, em sua “Gramática Normativa da Língua
Portuguesa”: “A gíria é a língua especial
de uma profissão ou oficio, de um grupo socialmente organizado, quando implica,
por sua vez, educação idiomática deficiente. A gíria atinge a fraseologia e,
especialmente, o vocabulário, já pela criação de palavras, já por se atribuírem
novos valores semânticos às existentes. Freqüentemente, a serviço da
expressividade, ela se insinua na linguagem familiar de todas as camadas
sociais”. A gíria não é um fenômeno recente. Desde os idos tempos da nossa
história, já se discutia seu uso e sua influência na sociedade, sendo
muito comum o seu emprego entre os grupos sociais, como se pode observar nesses
exemplos extraídos da nossa literatura: de José de Alencar, em “Encarnação”: “O médico chegava da Europa, onde se
tinha demorado quatro anos; e não sabia que a invasão do romance realista que
nos vem de Paris, tem posto em moda certa gíria
de cafés e bastidores, que algumas senhoras vão repetindo como linguagem de
bom-tom sem consciência das enormidades que às vezes escondem tais ditos
espirituosos”; de Aluísio de Azevedo, em “O Mulato”: “Na Casa da Praça, debaixo das
amendoeiras, nas portadas dos armazéns, entre pilhas de caixões de cebolas e batatas
portuguesas discutiam-se o câmbio, o prego do algodão, a taxa do açúcar, a tarifa
dos gêneros nacionais; volumosos comendadores resolviam negócios, faziam transações
perdiam, ganhavam tratavam de embarrilar uns aos outros, com muita manha de
gente de negócios falando numa gíria só
deles trocando chalaças pesadas, mas em plena confiança de amizade”; de Coelho Neto, em “A
Conquista”: “Se a
mãe o prendia ficava a fazer exercícios de capoeiragem no corredor, cantando
dobrados, a gingar, como fazia à frente dos batalhões, com uma gíria sórdida e gestos desempenados”; de
Lima Barreto, em “Marginalia”: “Daí, talvez, essa capacidade de
criar gíria, modificações e
derivações na linguagem comum, que sempre foi uma criação do pendor dos homens
para o seu agregamento; e ter tido ela influência decisiva nos nossos motins
políticos”; de
Monteiro Lobato, em “Antevéspera”: “Quando
publiquei meu primeiro livro recebi dele uma carta que conservo como prêmio Discutia
a “geringonça”, ou gíria como
dizemos hoje, e falava disso com a segurança do homem de ciência para o qual
tudo quanto representa criação tem valor”; de Guimarães Rosa, em
“Sagarana” (“São Marcos”): “E
não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. que o capiauzinho
analfabeto Matutino Solferino Roberto da Silva existe, e, quando chega na
bitácula, impõe: — “Me dá dez ‘tões de biscoito de talxóts!’ — porque deseja
mercadoria fina e pensa que “caixote” pelo jeitão plebeu deve ser termo
deturpado. E que a gíria pede sempre
roupa nova e escova”; de Olavo Bilac, em “Últimas conferências
e discursos”: “Salões e conventos, palácios e
ruas tinham a mesma gente sem moral. Os costumes eram soltos, e o falar desbragado.
Foi então que começou a florescer o medonho calão, que ainda hoje desonra o
idioma português, a gíria abjeta que
suja a imprensa de Portugal e do Brasil, essa horrenda geringonça, de que Eça
de Queiroz estereotipou o modelo em "Os Maias", no artigo asqueroso de
Palma Cavalão, na "Cometa do Diabo."
Quanto à etimologia de calão, para
Houaiss, é adaptação do cigano caló: preto e, por designação deles próprios,
cigano, pelo espanhol caló: linguagem dos ciganos. Quanto ao seu significado, diz o mesmo professor
Rocha Lima: “Calão é a língua especial
das classes que vivem à margem da sociedade, de caráter acentuadamente
esotérico, artificialmente ‘fabricada’ diz Dauzat — para se poderem compreender
entre si os indivíduos de certo grupo, sem serem entendidos pelos não-iniciados.
Inspirada na dissimulação dos malfeitores, cria um conjunto de convenções que a
estremem da língua-comum a que pertence, posto que nesta se desenvolva e
emaranhe. Estão neste caso o argot dos franceses; a germanía dos espanhóis; o furbesco dos italianos; o cant dos ingleses; o slang dos americanos; o Rotwelsch dos alemães; o dieventael dos holandeses; o afinskoe dos russos, etc. Para o linguista,
pois, calão é a língua especial dos delinqüentes portugueses e brasileiros.
Como a fala das mais baixas camadas sociais, por exprimir a vida desses grupos,
é naturalmente disfêmica, a palavra adquiriu a acepção vulgar de uso de termos
chulos, gravosos, pouco limpos.” Segundo os dicionários, calão é linguajar
rude, grosseiro, vulgar, obsceno etc. Seu uso também já
vem de antanho, como percebido nesses exemplos: de Machado de Assis, em
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”: “Chegou
a usar uma expressão menos elevada, mostrando assim que a língua filosófica
podia, uma ou outra vez, retemperar-se no calão
do povo. Funda um jornal, disse-me ele, e “desmancha toda esta igrejinha”; de
Lima Barreto, em “Marginalia”: “Entre os soldados propriamente,
que entre nós são em geral originários das mais humildes camadas da sociedade,
além do calão quarteleiro, há
histórias, contos, criados com os elementos que lhes estão à mão, e com um
pensamento diretor que lhes acaricia a sua desfavorável situação social, e os
consola da sua pobreza e do seu estado de obediência e inferioridade”; de João
do Rio, em “A alma encantadora das ruas”: “A
rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos,
impondo aos dicionários as palavras que
inventa, criando o calão que é o
patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado
todo o conforto humano.”
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É isso!
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