A etimologia de "Farroupilha"
A abonação mais antiga deste termo,
em documentos oficiais do século XVIII, foi encontrada pelo indefesso
pesquisador rio-grandense Aurélio Porto, a quem a história pátria já deve
tantos esclarecimentos. Chamavam-se ali, depreciativamente, farroupilhas uns descontentes nas proximidades
do Rio de Janeiro, que vieram à capital protestar contra medidas do governo daquele
“tempo do onça”.
O que significava esse termo,
diz-nos em 1727 o pai da lexicografia portuguesa, o Pe. Bluteau, no Supplemento ao Vocabulario: “FARROUBILHA: Termo chulo. O que anda mal
vestido e desfarrapado; pobretão." Neste primeiro registro da palavra,
o qual parece ter passado despercebido até hoje, o bom Bluteau enganou-se decerto,
quanto ao b em vez do p de farroupilha, bem como no d insólito antes de esfarrapado.
Em 1813 escreve o carioca Moraes
Silva na celebrada 2ª edição do seu Diccionario:
"FARROUPILHA: pessoa
esfarrapada", ao que a última 9ª edição só acrescentou: "maltrapilho, pelintra". O Diccionario de Constâncio,
cuja 1ª edição é de 1836, dá também “FARROUPILHA:
pessoa esfarrapada", o que
copiaram fielmente os de Faria e Lacerda. De 1837 data o Diccionario de Synonymos de José da Fonseca, que mais tarde Roquete
e Faria acrescentaram aos seus. Eis que lá se acha: "Farroupilha, esfarrapado, farrapão, maltrapilho".
Evidencia-se daí que já antes e
independentemente da revolução rio-grandense de 1835, vivia farroupilha qual
termo geral português. Não há dicionário posterior que o não registre, como
naturalmente também o de Domingos Vieira de 1873. Contemporâneo de 1881 dá até
uma abonação de Castilho, não influenciado, decerto, pela revolução gaúcha: "Acolho um farroupilha, dou-lhe a minha
alma, e ele, até a mulher, me quis roubar." Farroupilha não é, pois, somente
termo regional ou nacional brasileiro, mas genuíno português d'aquém e d'além
mar.
Farroupilha derivaria de farroupo?
Esta palavra, segundo o Elucidário de Viterbo, que com mais correção escreve farropo (autorizado também por Gonçalves
Viana), designou no século XV provavelmente carneiro (grande e castrado), como
em Turquel, perto de Alcobaça na Extremadura, ainda é o cordeiro (Cândido de
Figueiredo). Hoje, porém, "em algumas terras" (Viterbo), sobretudo
"no Alentejo" (Conde de Ficalho), passou a significar o porco (grande
e castrado). Moraes, já em 1813, cita a respeito o "Regimento dos verdes
e montados": "Farroupo é o
porco que ainda não passa de ano". Acrescenta também o diminutivo Farroupinho, o porco de menos de um ano,
que já não é bácoro; o marranito ou bacorote, como diz José da Fonseca.
Esse farroupo, ou antes farropo,
vem possivelmente do árabe charuf ou charof (carneiro, cordeiro), dum modo
semelhante como de al-charrub tiramos
alfarroba. Em todo caso, farroupo
parece termo raro, quase obsoleto, só em algumas regiões de Portugal usado para
porco e antigamente para carneiro.
Derivar desse nome regional, quase
desconhecido, o universal farroupilha,
já de antemão se afigura improvável. Só Aulete aventurou, dubitativamente e em
segundo lugar, para farroupilha uma "formação da raiz farrapo (ou farroupo?)”
Mas, neste último caso, era de
esperar o masculino farroupilho,
significando porquinho ou
primitivamente carneirinho, sendo
daí difícil a passagem semântica para o sentido esfarrapado, indicado por todos desde Bluteau. Tanto mais que farrapo estava à mão, admitido também
expressamente por Constâncio, Faria, Lacerda, pelos competentes Adolfo Coelho e
Gonçalves Viana, por Figueiredo, Lemos, Jackson, Silva Bastos, Brunswick,
Séguier, Antenor Nascentes, o próprio Aulete em primeiro lugar, por todos enfim!
E veremos adiante como essa etimologia de farrapo,
ou antes farpa, plenamente se
justifica.
Vejamos agora a etimologia de farrapo ou farpa, para preparar a de farroupilha.
Sem entrarmos em minúcias, aqui numerosas e complicadas, basta dizer que a última
ciência etimológica, representada sobretudo pela 3ª edição, agora em 1935
terminada, do Romanisches Etymologisches
Wóterbuch de Meyver-Lübke, corrobora cada vez mais a probabilidade de virem
tanto farrapo, como farpa e felpa dum mesmo radical galo-romano.
Como tal adopta Meyer-Lübke, segundo glossários do X século, o latim medieval faluppa, (palhinha) modificado também
para falapa, frapa, farupa, etc. Daí
viriam o italiano frappa, igual ao
nosso farpa, ao antigo francês frepe, ferpe, felpe, de onde
tiramos felpa, etc. Farrapo mesmo será um substantivo
verbal de farpar, que se alargou
para fa(r)rapar, usado por Gil Vicente. O rr dobra do português farrapo aparece ainda simples no correspondente
espanhol harapo, mas com tendência de
duplicar-se em arrapo e des(h)arrapado. O antigo espanhol haldrapa, haldraposo, insinua uma influência de drapo = trapo (francês drap), que determinou talvez também a forma
masculina harapo, farrapo, a despeito de farpa feminina.
Pode derivar-se agora, de um modo
mais inteligível, farroupilha de farrapo ou antes farpo, o que no fundo vale o mesmo. A terminação diminutiva ilha, propriamente feminina, pressupõe
um étimo feminino, como também farpela,
pela mesma razão, deve ser derivada antes de farpa que de farrapo.
Pois bem, por analogia de farpela, “roupa
reles”, admitamos farpilha, de
sentido semelhante. Esta forma alargou-se, porém, fa(r)ropilha, quase como farpar
para farrapar, farrapo, só que tomou o o:
farropilha
(sendo ou de farroupilha capricho ortográfico.
Esse o se explica: ou por certa predileção
da labial (p) por o, do que Cornu dá bastantes exemplos, sendo
conhecidíssimo: por em vez de per, ou por um regresso, marcado com formas
hoje extintas, aos étimos antigos foluppa,
faruppa, faropa etc. Corresponde assim, por exemplo, no mesmo radical, ao
piemontês flapa (casulo), o
toscano-lombardo falopa. Não se esqueça,
aliás, que farropilha é forma
popular, chula segundo Bluteau, onde as vogais variam às vezes como ao acaso,
não admirando assim a mudança de farpilha
para farropilha. Comparem-se as formas
populares francesas, do mesmo radical e sentido (= farropilha, maroto): antigo frapaille,
moderno frapouille ou fripouille.
O significado de farropilha teria sido, na origem, quase
o mesmo que farpella ou “roupa
esfarrapada”. Cedo, porém, passou o termo a designar um homem1 vestido de tal
roupa, um esfarrapado, tornando-se assim também masculino. Disto não faltam
exemplos, até da mesma desinência: o pandilha
é o cumplice duma pandilha ou “panelinha
conluiada”; o potrilha é propriamente
um atacado da potra (ou da potrilha); o bigorrilha parece corruptela popular do figurilha (que faz uma figurilha
ou figura pequena, um vil ou miserável). Significativo é que Cândido de
Figueiredo explica tanto o pandilha,
como o potrilha por farroupilha e bigorrilha! Usa-se no sul do Brasil também o americanismo espanhol:
o cajetilha, para designar um
habitante presumido das cidades, nome derivado de cajetilla (caixinha), talvez por significar (caixinha), de cajeta (de trinque).
Lembremos ainda que também o galego
tem farroupeiro (esfarrapado ou farropilha) Ponderando tudo, convencer-nos-emos
de que farropilha é tuna antiga herança
da língua popular portuguesa, herança que faríamos mal em trocar por um
artificial farrapilha que como tal
nunca viveu.
Por fim, a questão da ortografia
exata: farroupilha ou farropilha? Sem dúvida alguma, à vista
da derivação exposta, não se vê em nada justificado o ou, que deveria representar um au,
al, oc ou o-i primitivos, que
aqui nunca existiram. Por qualquer capricho, começou-se a escrever uma vez farroupilha, talvez por instintiva assimilação
a roupa. E assim ficou, graças à rotina
ou à célebre lei da inércia. Já vimos que, no diferente farroupo, Viterbo citou dos documentos a forma correta farropo, não aceita contudo. E temos mais
o toucinho, a garoupa ou choupa etc.,
com ou indevidos.
Mas neste tempo da simplificação ortográfica,
poderíamos e deveríamos restabelecer a grafia correta: farropilha, farropo etc.
Vemos, porém, que se alteram a talante símbolos antiquíssimos, fundados na história
da língua e aconselhados pelo bom senso já para distinguir mas formas meramente
arbitrárias, introduzidas por acaso e por capricho mantidas, conservam-se
carinhosamente, sem utilidade nem razão. Receemos que também farroupilha vá gozar desse privilégio,
embora este, como outras regalias nunca tenham entrado nas aspirações dos
verdadeiros farropilhas!
J. A. Padberg-Drenkpol
Revista "Excelsior", abril de 1935.
Revista "Excelsior", abril de 1935.
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